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Crônica: Saudades Suas

Foto do escritor: Lara Eliza FerreiraLara Eliza Ferreira

Atualizado: 10 de out. de 2023

Por: Lara Eliza

Meu caro amigo, sinto saudades suas. Faz muito tempo que a gente não conversa, não se vê... Desde que você foi expulso do colégio, a gente não conversou mais, a gente não saiu como saia antes e nem jogamos mais seu videogame. Me tornar seu amigo naquela época, foi uma das melhores coisas que me aconteceu. Eu conheci alguém que não era como eu. Conheci alguém que tinha um pai e uma mãe em casa, que tinha um carro mesmo sem idade para dirigir e conheci alguém que falava várias línguas fluentemente. Se você tivesse nascido na minha terra, você seria considerado uma criança bruxa por ter brincadeiras um pouco agressivas e também por ser desenvolvido demais para sua idade. E eu acho que foi isso que mais me encantou na nossa amizade, a diferença cultural. Coisas que eram comuns para mim eram muito estranhas para você e coisas comuns para você eram muito estranhas para mim. Lá no Congo nem todas as crianças vão para a escola, algumas precisam trabalhar e aqui no Brasil, é obrigatório.

Aqui na sua terra tem pobreza, tráfico e roubo como em qualquer outro lugar mas não tem guerras como no Congo. Lá, tem guerras por liberdade, guerras em busca de paz e é muito comum assassinatos, prisões arbitrárias e detenções em condições desumanas. E eu sei como isso pode afetar uma criança. Eu vi coisas que jamais vou esquecer e que ainda me doem ao lembrar. Apesar de tudo, você se tornou meu companheiro e eu amava ir na sua casa mesmo depois que seu pai achou que eu estava roubando aquele CD da sua mochila que na verdade, era meu presente de aniversário pra você. Eu sei que se eu tivesse uma mãe, ela não deixaria eu voltar na sua casa, não me deixaria andar descalço e nem vestir as roupas que eu usava. Mamãe se foi muito cedo e eu não sei como. Ela nunca mais voltou e fez falta durante toda minha vida, principalmente em momentos como esse.

Mesmo depois de tudo, eu sinto saudades suas e quero compartilhar com você, as coisas boas que vem acontecendo desde aquele dia. Antes de mais nada, eu não sabia que aquele estojo que você pedia para eu sempre entregar para o Gaspar, estava com maconha dentro, senão, eu jamais teria entregado isso para ele. A gente era jovem, estávamos só no segundo ano do ensino médio e eu sempre acreditei que você era meu amigo. Quando você foi descoberto pelo diretor, você disse que as drogas eram minhas e você sabe que isso não é verdade. Seu pai, um médico muito influente, me procurou e disse que me ajudaria a encontrar a mamãe e em troca eu deveria dizer que as drogas eram minhas. Naquele momento, eu queria muito dizer que eram minhas. Eu não comia bem a dias, não me adaptava ao Brasil, queria descobrir onde mamãe estava, e eu queria que você ficasse bem. Mas o monitor do orfanato, disse que eu não podia assumir uma culpa que não era minha e eu não assumi e desde a sua expulsão, eu nunca mais vi você.

Eu lembro que no dia que terminei o colégio, foi o dia que mais chorei em toda minha vida. Eu nunca pensei que ia conseguir um diploma e tenho certeza que mamãe teria ficado orgulhosa. Pouco depois, prestei vestibular e achei muito difícil. Tive muita dificuldade em interpretar as questões porque eu ainda tinha dificuldades com o português. Eu precisava me esforçar ao máximo pois quanto mais o tempo passava, menos tempo eu tinha como refugiado no Brasil, então eu precisava estudar e arrumar um trabalho. Como eu já tinha 19 anos, consegui um emprego de açougueiro e precisei conciliar estudo e trabalho para conseguir entrar na USP.

Quando criança, eu queria ser médico para ajudar as pessoas mas achei outra área que me interessava mais. Eu prestei vestibular duas vezes e só consegui ingressar na segunda tentativa graças a lei de cotas que foi de grande ajuda. Eu passei em segundo lugar em relações internacionais e cada experiência positiva que eu vivia eu só queria compartilhar como você. Naquela época eu não tinha telefone, então não podia te acompanhar pelas redes sociais, mas o boato era que você tinha ido morar na Espanha em um colégio interno. Eu fiquei feliz em saber que você estava bem, amigo. Eu fiquei feliz !

Não posso dizer que todo o processo foi bom mas me formei e agora tenho uma profissão. Tenho amigos agora, um esposo e dois filhos. Tenho uma casa grande que tem água, energia e um quintal gigantesco em que eu posso brincar com meus filhos todos os dias. Eu tenho uma vida ótima agora. Tenho traumas ao lembrar da mamãe por não saber o que aconteceu com ela até hoje, às vezes, penso em voltar para o Congo para procurá-la, mas não sei se estou pronto.

Depois de me apaixonar pelo meu marido, eu descobri que eu te amava. Eu realmente te amei e lembrar disso às vezes me machuca. Me sinto traído. Você foi muito legal comigo. Você parecia querer o meu bem, me ajudava nos trabalhos e me pagava sorvete quando sabia que eu não tinha dinheiro, que era quase sempre. Mas para ser sincero, eu não penso muito em você como antes. Faz muito tempo, e o tempo curou as feridas. Tantas coisas boas tem acontecido na minha vida, que eu não consigo ficar pensando em coisas que me deixam triste.

Eu só quis escrever pra você hoje porque eu te vi. Na primeira página do jornal. Você estava dirigindo alcoolizado, atropelou duas crianças e não prestou socorro e em depoimento disse que "As crianças que estavam na rua". Fiquei encarando aquele jornal por horas reconhecendo aquele rosto familiar e ao mesmo tempo, tentando entender quem era você. Você era aquele amigo que me ajudava ou o amigo que me acusou injustamente ? Eu quero acreditar que você sempre foi aquele amigo que me ajudou quando eu precisei e quero continuar amando aquele amigo que me ajudava e eu sei que eu amo você amigo, mas também sei que eu não gosto mais de você !



INFORMAÇÕES DO AUTOR: Essa crônica foi construída com base na história de Samuel, uma criança nascida na República Democrática do Congo que está inserida em um contexto de vulnerabilidade social. Essa história foi compartilhada através do The Human.


A imagem de capa é meramente ilustrativa (CEDIDA PELO CANVAS).

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